segunda-feira, 21 de março de 2011

Um mundo catita


O percurso de um homem é uma construção contínua de escolhas, de encontros casuais, e talvez, para os que possuem uma sensibilidade metafísica, que de uma maneira consciente, ou então não, colocam o volante da sua vida nas mãos de um criador omnipresente, mas cruelmente ausente, de coincidências. É a vontade de Deus, afirmam eles na sua inocência infantil. Claro que o contexto da situação, do acontecimento, em que essas palavras são proferidas, é fundamental para que tal consideração deixe de ser uma pérola mental de sabedoria, e saia para o mundo como se fosse um tranquilizante para uma alma inquieta (se acreditarem no conceito religioso da alma). Um indivíduo com noventa anos é levado ao hospital devido a uma notória dificuldade em respirar. É-lhe diagnosticada uma infecção respiratória por um médico que o observa com frieza, cansado, sem paciência para perder o seu tempo com um homem que já viveu o suficiente, mesmo que essa seja a sua função, mesmo que tenha feito um juramento que o compele a ajudar um semelhante. Minutos depois, após um exame rudimentar, é enviado para casa apenas com uma folha de papel que lhe permitirá adquirir um medicamento que irá aliviar a sua dor muda, pois um homem de noventa anos não se queixa, não reclama, nem tem forças para pedir que façam mais por ele, que o salvem da escuridão que o quer reclamar. Na noite a seguir, ao colocarem, com tristeza, o comprimido milagroso, que supostamente o curará da maleita que o aflige, na boca, ao provar o sabor amargo de uma mescla de químicos que lhe picam a ponta da língua e não consegue engolir, os seus olhos vítreos fecham-se, desta vez para sempre. É a vontade de Deus, é então dito vezes e vezes sem conta, ilibando o tempo, a sua condição, e até o médico, de qualquer responsabilidade na sua morte. É a vontade de Deus.

Nós somos animais, criaturas de carne e osso que se deleitam com a sua magnificência, que se orgulham de terem tomado conta do planeta através do engenho e da força, mas que, apesar de todos os seus feitos, sejam eles civilizacionais, culturais, morais, artísticos, ou tecnológicos, continua a ser guiada por instintos primitivos. Um simples olhar luxurioso, numa rua, num bar, numa estação ferroviária, a promessa de uma noite de paixão rápida, anónima, iniciada com a troca de números de telemóveis ou de e-mails, e concretizada através do envio de mensagens electrónicas, ou trocas monetárias, em que a excitação do contacto carnal fugaz numa pensão escondida é infinitivamente mais aprazível, mais extraordinária que uma ligação emocional duradoura, algo que, sejamos realistas, é praticamente impossível de concretizar num mundo moderno, despersonalizado, em que a velocidade a que nos movemos não permite perder muito tempo com a intimidade, é o que basta para preencher a nossa necessidade natural de aceitação, para nos convencer-mos de que não perdemos o dia a lavar pratos num restaurante em que não passamos de objectos, que não somos uns falhados, que fizemos algo de espantoso, que durante meia-hora fomos o centro do universo para alguém, fomos desejados, que acrescentámos mais uma história ao livrinho preto de que nos podemos gabar a quem quer que esteja disposto a nos ouvir.

Escolhas, encontros casuais, coincidências, experiências que modificam a nossa vida, que moldam o nosso caminho, que nos abrem os olhos para o futuro. São seis horas da noite. Dois colegas de turma saem da escola satisfeitos por mais um cansativo e excruciante dia de aulas ter terminado, deixando para trás as salas, com a tinta a descascar, em que foram metidos como gado para que as suas jovens mentes pudessem absorver a educação que lhes fora imposta por estranhos, onde estiveram sentados mais de sete horas em cadeiras duras, desconfortáveis, a ouvir, com pouca atenção, as esgotantes palestras que os professores lhes davam com o objectivo de lhes cravar no cérebro uma série de informações e factos que não lhes interessava, que não eram relevantes para o seu futuro, informações e factos que , na sua óptica, não tinham utilidade prática. Caminham pela penumbra da noite fresca envolvidos numa conversa banal, insultando-se um ao outro e partilhando ideias sem pés nem cabeça. Subitamente, num beco entre dois prédios, em que a iluminação era fraca, dão de caras com um grupo de rapazes, uns mais novos, outros mais velhos que eles, que começam a caminhar rapidamente na direcção deles ao ver que se aproximavam, rodeando-os. Um pede-lhes trocos, um segundo ordena-lhes que mostrem as mochilas, um terceiro, talvez para impressionar os amigos, talvez para mostrar força, pergunta, sem nenhum motivo, ao rapaz que estava ao lado dele Buga dar uma facada neste gajo? Felizmente, no seio do grupo, encontrava-se uma pessoa, um dos rapazes mais velhos, que os colegas tinham conhecido há dias enquanto jogavam futebol, e para o qual um dos colegas de escola se vira, com receio, e pergunta X, como é? Com um simples mover de lábios, o X diz-lhes para não se preocuparem e ordena aos companheiros que que não lhes façam mal e os deixem em paz.

Três histórias ficcionadas, três histórias reais. A verdade? É este o nosso legado.




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