quarta-feira, 27 de abril de 2011

Não, não, cidadão é o senhor

O país atravessa um momento crítico; somente um indivíduo encravado numa profunda ilusão, a viver numa realidade quimérica em que as casas são feitas de chocolate e os rios de mel, poderá ensaiar um ataque a essa evidência irreprochável, por demais patente na nossa rotina diária, tão visível a olho nu como o nascer ou o pôr do sol. As reacções das pessoas ao lodaçal viscoso em que permitiram que as enterrassem, escusando-se a contestar a competência ou as direcções que uns guias inaptos, comicamente desnorteados lhes ladravam com uma prepotência saloia, incapazes de exibir humildade e admitir que o carreiro por onde as conduziam estava minado, variam entre o cinismo, a revolta, e a renúncia silenciosa, os que se convencem que não há nada que possam fazer e, portanto, se demitem das suas responsabilidades - eles que tratem disto que é para isso que eu voto. Não me vou armar em oráculo, não tenho vocação para lançar grunhidos genéricos ao ar com a tenção de prever o futuro, nem em chico esperto, como os iluminados que saíram da toca depois do irremediável para propor mudanças que são um atentado ideológico retrógrado aos direitos mais básicos dos cidadãos, mas questiono o papel que nós, peões de um gigantesco tabuleiro civilizacional que já ultrapassa as fronteiras nacionais, teremos de desempenhar em anos vindouros, assim como a caracterização das personagens. Falo por mim a partir daqui. O que sou, o eu, deriva das conquistas suadas de um punhado de homens e mulheres de espírito buliçoso, homens e mulheres que disseram não à resignação substanciada por um regime opressivo, negando-se a pactuar com um status quo que rejeitava ferreamente a expressão individual, o pensamento livre, a justiça. E o que sou eu? Um rapaz nascido numa cidade cosmopolita, educado numa sociedade livre por uns pais - uns pobres coitados provenientes do campo a norte - que nunca tiveram infância, cidadão anónimo a morar numa selva de cimento e betão que devia ser um glorioso monumento à tolerância, às conquistas de uma revolução não concretizada - de onde não se tiraram vantagens da miscelânea de pontos de vista contraditórios à linha de pensamento neutra que gere o sistema actual (o Centrão). Sou fruto de uma árvore que foi regada com os costumes, propósitos, e preocupações que vieram com a democracia, logo, em vários planos, a senhora D é o veículo real dos valores éticos e morais que me foram propostos, baseados na entreajuda social, na cooperação, e numa igualdade de direitos, de oportunidades, que permite, a quem estiver disposto a submeter-se ao esforço, a melhorar as suas as condições de vida. Levando tudo isto em conta, é-me difícil de entender, impossível de alcançar, o desprezo despudorado, cada vez mais audível, que umas figurinhas sem importância (paladinos da verdade que, curiosamente, tendem a atacar sistematicamente o elo mais fraco da cadeia social, e a quem é concedida atenção por se moverem na esfera política) têm demonstrado por estes conceitos básicos. Talvez se sintam de peito cheio por terem o chapéu de chuva FMI a proteger-lhes as cabeçinhas. Os desempregados de longa duração são rotulados de vampiros que se acomodam à sua condição de cidadão inactivo e sugam os recursos do Estado, os pobres génios maquiavélicos que se trancam num bunker subterrâneo no meio de nenhures a planear o roubo do dinheiro dos contribuintes enquanto soltam uns risinhos maliciosos, os idosos são uns párias sem qualquer utilidade prática que até podiam servir o país se se engasgassem na sua solidão, os trabalhadores não passam de ferramentas em formato carne e osso protegidos por um muro de regalias e direitos que é um entrave ao crescimento económico e ao lucro...

Gostava que me informassem se, na próxima década, me devo transmutar num estupor que se regala numa hipocrisia exibicionista, se me devo comportar como um modelo cívico (adequado a estes tempos modernos) que ataca os que têm menos que eu, prescindindo da voz para falar das mordomias que só estão disponíveis para uma elite e começar a cuspir veneno contra aqueles que não se podem defender no palco mediático.
É ou não é este o cidadão que querem para um novo mundo?

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